
Apotecários no século 18: os precursores dos farmacêuticos em Outlander e na vida real
CIÊNCIA E COSTUMES DE ÉPOCA


Ao pensar em medicina no século 18, é comum visualizar cirurgiões-barbeiros, médicos formados com métodos rudimentares ou até curandeiros, todos reunidos em um cenário onde a higiene e o conhecimento científico eram muito mais limitados que hoje. Entre esses profissionais, porém, existia uma categoria fundamental para a saúde do período: os apotecários, figuras que dominavam o ofício de produzir e fornecer remédios, extratos de plantas e ungentos para diversos males. Em Outlander, a presença de um apotecário como Master Raymond desperta curiosidade sobre o papel desses homens (e, em alguns casos, mulheres) na sociedade, além de evidenciar as diferenças e semelhanças entre a medicina moderna e as práticas do passado.
Este artigo analisa a função dos apotecários, a forma como preparavam medicamentos e cuidavam de pacientes no século 18 e a maneira como a série retrata esse ofício. Também discutiremos se o retrato em Outlander permanece fiel à realidade histórica ou se toma liberdades ficcionais. Por fim, veremos como esses “precursores dos farmacêuticos” foram relevantes para a evolução do conhecimento medicinal, deixando um legado que se mantém vivo nas farmácias e laboratórios atuais.
O que eram os apotecários e qual era sua função na sociedade da época?
Os apotecários (do termo em latim tardio apothecarius, significando “dono de uma loja” ou “armazém”), surgiram no contexto europeu como responsáveis por estocar, manipular e vender substâncias usadas para tratar enfermidades. Suas lojas, muitas vezes chamadas de “boticas,” armazenavam ervas, especiarias, óleos, sais e outras matérias-primas, permitindo a confecção de infusões, xaropes, unguentos e pílulas. Assim, funcionavam como um elo essencial no sistema de saúde, tanto nas cidades quanto em regiões rurais, suprindo a população com remédios e conselhos básicos.
No século 18, as funções do apotecário iam além da mera venda de produtos. Ele também era consultado por pessoas que não podiam pagar um médico, ou que simplesmente não tinham acesso a um profissional com formação universitária. O apotecário, portanto, atuava como uma espécie de “médico prático,” oferecendo diagnósticos elementares e recomendações — algo muito comum em lugares onde a presença de doutores formados em grandes centros era escassa ou inexistente. Em muitos casos, esses profissionais aprendiam seu ofício de forma empírica, trabalhando como aprendizes em boticas reconhecidas.
O surgimento de associações de apotecários e guildas de boticários ajudou a conferir certa credibilidade e padronização do ofício. Ao mesmo tempo, havia controvérsias sobre a fronteira entre o trabalho do médico e o do apotecário: quem detinha a autoridade para receitar medicamentos? Até que ponto o apotecário poderia interferir no diagnóstico? Essas disputas aparecem em documentos históricos, sobretudo na Inglaterra e na França, e refletem as tensões sobre hierarquias profissionais na medicina pré-moderna.
Os apotecários e a medicina do século 18: como eles preparavam remédios e quais eram os tratamentos mais comuns?
No século 18, a teoria dos germes ainda estava muito distante de se tornar consensual. A medicina ocidental baseava-se em parte nos chamados “quatro humores” (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra), herança do pensamento greco-romano. Assim, uma doença podia ser atribuída a um desequilíbrio de humores, e os tratamentos buscavam restaurar esse equilíbrio, geralmente por meio de sangrias, vômitos induzidos, purgantes ou dietas específicas. Dentro desse panorama, o apotecário preparava compostos que iam de simples chás de ervas a fórmulas mais complexas, misturando substâncias de origem vegetal, mineral e até animal.
As práticas de um apotecário típico incluíam:
Seleção e estocagem de ervas e especiarias: Folhas secas, raízes, flores e sementes eram organizadas em frascos, rotuladas e mantidas em locais com condições mínimas de preservação.
Manipulação e dosagem: Com base em livros de receitas médicas (farmacopeias) ou nos ensinamentos adquiridos ao longo de anos de aprendizado, o apotecário combinava ingredientes. Podia triturar elementos em um almofariz, destilar essências e medir quantidades em balanças rudimentares.
Infusões e unguentos: Muito do trabalho era direcionado a produzir chás, xaropes e pomadas para problemas comuns, como febres, dores abdominais, feridas, inflamações na pele e pragas sazonais.
Busca por substâncias exóticas: Com a expansão comercial europeia, algumas lojas recebiam insumos vindos das Américas ou da Ásia, como quinina (derivada da casca de quina), cravo, canela, ópio, cacau e outros itens que aumentavam o arsenal terapêutico. Isso conferia aos apotecários certo prestígio e a possibilidade de oferecer soluções “inovadoras” para o período.
Como a ciência moderna ainda engatinhava, a eficácia real de muitos desses medicamentos variava. Havia, por exemplo, compostos que até hoje reconhecemos como úteis — como derivados da salicina (presente no salgueiro, precursor da aspirina), ou o uso da quinina contra malária. Porém, outros remédios careciam de base científica ou continham substâncias tóxicas em doses perigosas (arsênico, mercúrio), podendo agravar o quadro do paciente. A habilidade e a experiência do apotecário faziam toda a diferença entre um tratamento minimamente efetivo e um risco ainda maior à saúde.
A diferença entre apotecários e médicos: eles eram confiáveis ou charlatães?
A formação de um médico na época era dispendiosa e passava por universidades ou faculdades de medicina, onde o ensino englobava anatomia, cirurgia (em graus ainda limitados) e leituras das obras médicas clássicas. Já os apotecários, em grande parte, seguiam um modelo de aprendizado prático: começavam como aprendizes em boticas, aprendendo a reconhecer plantas, misturar substâncias e lidar com clientes. Ao término desse período de vários anos, poderiam abrir sua própria loja ou trabalhar para um mestre mais experiente.
Essa diferença de origem gerava atritos. Muitos médicos viam os apotecários como “inferiores” ou “pretensiosos” que se aventuravam em diagnósticos sem ter “real” formação. Por outro lado, as pessoas comuns, principalmente nas zonas rurais, confiavam muitas vezes mais nos apotecários locais do que em médicos distantes e caros. A pergunta “confiáveis ou charlatães?” não tem uma resposta simples: apotecários honestos e hábeis eram considerados pilares da saúde nas comunidades, enquanto outros, menos escrupulosos, podiam vender panaceias duvidosas e explorar a fé das pessoas em curas milagrosas.
Em alguns centros urbanos, a rivalidade entre médicos e apotecários chegou ao ponto de gerar disputas legais. Um caso emblemático ocorreu na Inglaterra, onde a Sociedade de Apotecários (Worshipful Society of Apothecaries) conseguiu autorização para regular o exercício do ofício, enquanto o Colégio de Médicos combatia o que considerava um abuso de autoridade. Uma realidade semelhante se repetia na França, com as corporações de boticários lutando por reconhecimento e direitos de exercer funções mais amplas. No século 18, portanto, a credibilidade de um apotecário dependia tanto de seu renome pessoal quanto das relações que mantinha com médicos e pacientes.
Apotecários em Outlander: como a série retrata essa profissão e sua importância na história de Claire, a Damme Blanche
Em Outlander, um dos personagens que chama atenção é Master Raymond, descrito como um apotecário misterioso que Claire encontra em Paris. A trama se passa no século 18, período em que a protagonista está vivendo graças à viagem no tempo, levando consigo um conhecimento médico do século 20. Esse encontro entre uma “enfermeira moderna” e um “apotecário do passado” suscita grande curiosidade, pois Claire (também chamada de Damme Blanche) descobre, no estabelecimento de Raymond, uma variedade de produtos químicos e orgânicos que ela reconhece como ingredientes fundamentais para remédios rudimentares.
Master Raymond aparece como um homem sábio, conhecedor de práticas que vão além da simples manipulação de ervas, quase beirando o oculto ou o alquímico. Ele é capaz de aconselhar Claire sobre como lidar com certos venenos ou sintomas que, na Paris pré-Revolução, estavam longe do alcance das teorias médicas oficiais. A série sugere que Raymond possui uma rede de contatos e um conhecimento que atravessa gerações, fazendo dele um misto de curandeiro, conselheiro e comerciante de produtos exóticos.
Para Claire, a existência de uma botica com tantos insumos disponíveis em Paris é ao mesmo tempo um alívio e um choque. Embora ela tenha formação e vivência de um século mais avançado, percebe que não pode simplesmente fabricar antibióticos ou utilizar equipamentos estéreis numa época em que isso não existe. Assim, ela se vale do que encontra com Raymond e do que domina sobre anatomia e cuidados clínicos. Os dois estabelecem uma relação de respeito mútuo, pois cada um enxerga no outro uma rara compreensão do poder das substâncias naturais. Esse “encontro de mentes” reflete, em parte, a realidade de alguns apotecários bem instruídos, que se tornavam aliados de médicos visionários — ainda que a referência ao misticismo seja reforçada no enredo da série para aumentar o tom de mistério.
Separando realidade e ficção: o que foi fielmente representado e o que foi alterado na série?
No que diz respeito à fidelidade histórica, Outlander consegue transmitir a noção de que apotecários detinham grande sabedoria sobre ervas e poções, e que suas lojas funcionavam como centros de abastecimento medicinal. Esse ponto é bastante próximo da verdade: em grandes cidades como Paris, Londres ou Edimburgo, havia boticas muito bem organizadas, com frascos, recipientes e até livros de receitas detalhadas para doenças comuns e raras. Além disso, a série mostra as tensões entre diferentes correntes médicas e a maneira como a nobreza e a alta sociedade recorriam a esses serviços para atender demandas pontuais.
Por outro lado, é preciso considerar que Outlander envereda por caminhos de fantasia ao sugerir que Master Raymond tem quase uma intuição sobrenatural, bem como uma espécie de veneração pela “linha de cura” que Claire também representaria. A narrativa flerta com um aspecto místico, o que não se encontra nos registros históricos de apotecários reais — pelo menos não no sentido de “adivinhações” ou “premonições.” De fato, era comum que alguns boticários também se interessassem por alquimia ou astrologia, mas isso não era regra geral. Muitos eram, antes de tudo, comerciantes e artesãos da medicina.
Outra diferença diz respeito à facilidade de acesso que Claire demonstra ter a certas substâncias. Embora seja plausível que uma botica parisiense reunisse itens vindos de colônias distantes (algumas raridades de origem vegetal ou mineral), a disponibilidade de tudo o que ela precisava pode ser um artifício de roteiro. Na realidade, o transporte de tais bens era incerto e caro, e o controle de qualidade deixava muito a desejar. Ademais, a parceria entre um apotecário e uma “mulher estrangeira” formada no futuro poderia causar escândalo ou desconfiança ainda maior do que a série mostra, já que as normas sociais e as desconfianças contra mulheres que exerciam práticas médicas eram fortes.
Conclusão: O impacto dos apotecários na evolução da farmácia moderna
Os apotecários, como precursores dos farmacêuticos modernos, foram fundamentais para o desenvolvimento de medicamentos e métodos de manipulação mais refinados. Ainda que limitados pelo conhecimento científico disponível, eles deram passos pioneiros na catalogação de substâncias e na padronização das doses, deixando um legado que se tornou a base da farmácia de hoje. Em pleno século 18, ao atender a população local e colaborar com médicos — ou mesmo substituí-los em regiões remotas —, eles cumpriram um papel de grande relevância na manutenção da saúde pública.
Em Outlander, personagens como Master Raymond representam tanto a figura histórica do apotecário quanto o toque ficcional que a série imprime ao mundo pré-industrial. A interação de Claire com a botica em Paris ressalta o quanto esses locais eram valiosos, contendo remédios que podiam salvar vidas ou causar estragos irreparáveis, dependendo do uso correto ou errôneo. Embora a série adicione camadas de misticismo, não se pode negar que há muito de verdadeiro naquilo que vemos: a curiosidade intelectual, o senso prático de combinar substâncias e o risco contínuo de provar e testar compostos numa época sem grandes protocolos de segurança.
Hoje, a profissão de farmacêutico tem raízes diretas na tradição dos apotecários — a diferença é que o acúmulo de descobertas científicas e a regulação moderna permitem um controle muito mais efetivo sobre eficácia e segurança de medicamentos. O que antes era feito com almofariz e pilão, seguindo receitas de livros e conselhos orais, hoje se transformou em laboratórios de ponta, com procedimentos rigorosos de testes clínicos. Ainda assim, a essência do apotecário permanece viva na figura do farmacêutico que entende de princípios ativos, posologia e interação medicamentosa. Em última instância, a boa prática farmacêutica moderna mantém o espírito de servir à comunidade, oferecendo cuidado e orientação confiável sobre tratamentos — algo que já no século 18 se percebia, ainda que de modo mais incipiente, nas silenciosas lojas de boticários por toda a Europa.
Fontes consultadas
Loudon, Irvine. Medical Care and the General Practitioner, 1750–1850. Oxford: Clarendon Press, 1986.
Wear, Andrew. Knowledge and Practice in English Medicine, 1550–1680. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
BBC History – “A history of pharmacy”:
https://www.bbc.co.uk/history/0/21702491Museum of the Royal Pharmaceutical Society – “The Development of Pharmacy in Britain”:
https://www.rpharms.com/museumPharmacy in History – “Early Modern Apothecaries”:
https://pubs.lib.uiowa.edu/pharmacyinhistory/
A estranha Medicina do Século 18
Para saber mais sobre como a série Outlander retrata práticas médicas e farmacêuticas no século 18, incluindo curiosidades sobre Master Raymond e a postura de Claire diante dos recursos limitados da época, confira o vídeo:
